quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

O Cálice Dourado

Seis horas de uma sexta-feira – Max Lucado

Capítulo 10

O Cálice Dourado

Chamas saltam do monte. Almofadas de fumaça flutuam para o alto. Labaredas alaranjadas estalam e espocam.

Do meio da fogueira sai um grito - o protesto de um prisioneiro quando a porta da masmorra é fechada; o rugido de um leão quando sente o calor da floresta em chamas.

O grito de um filho perdido ao procurar seu pai.

- Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?

As palavras ricocheteam de estrela para estrela, indo cair dentro da câmara do Rei. Mensageiras de sangrento campo de batalha, elas entram aos tropeções na presença do Rei. Feridas e quebradas, imploram ajuda, alívio.

Os soldados do Rei preparam-se para atacar. Montam seus corcéis e posicionam seus escudos. Desembainham as espadas.

Mas o rei está silencioso. Esta é a hora para a qual ele traçou seus planos. Ele sabe que curso sua ação tomará. Esteve à espera dessas palavras desde o princípio -desde que o primei­ro veneno foi contrabandeado reino adentro.

Esse veneno veio camuflado. Veio num cálice dourado de longa haste. Veio com sabor de fruta. Veio, não nas mãos de um rei, mas nas mãos de um príncipe - o príncipe das sombras.

Até aquele momento, não havia existido motivo para se

esconder no Jardim. O Rei caminhava com seus filhos e os filhos conheciam o seu Rei. Não havia segredos. Não havia sombras.

Então o príncipe das sombras entrou no Jardim. Ele teve de se esconder. Era feio demais, repulsivo demais. Crateras lhe desfiguravam o rosto. Por isso chegou na escuridão. Veio cingi­do de ébano. Estava completamente escondido; somente a sua voz podia ser ouvida.

- Prove-o - sussurrou ele, segurando o cálice diante dela.

- Tem a doçura da sabedoria.

A filha ouviu a voz e voltou-se. Estava intrigada. Seus olhos jamais haviam contemplado uma sombra. Havia algo tentador e atrativo na maneira como ele se escondia.

O Rei observava. Seu exército sabia que o príncipe das sombras não estaria à altura da sua poderosa legião. Ansiosa­mente, esperava a ordem de atacar.

Mas nenhuma ordem foi dada.

- A escolha é dela - instruiu o Rei. - Se ela nos procurar para ajudá-la, essa é a sua ordem de livrá-la. Se ela não nos procurar, se ela não me buscar, não interferiremos. A escolha é dela.

A filha fitou o cálice. Rubis engastados em filigranas de ouro convidavam ao toque. O vinho tentava-lhe o paladar. Ela esten­deu a mão, segurou o cálice e bebeu o veneno. Seus olhos jamais se dirigiram para o alto.

O veneno jorrou através dela, distorcendo-lhe a visão, defor­mando-lhe a pele, e contorcendo-lhe o coração. Ela pulou para dentro da sombra do príncipe.

De súbito, sentiu-se solitária. Teve saudades da intimidade que usufruia antes. Entretanto, em vez de retomar ao Rei, preferiu induzir outro a afastar-se dele. Ela tornou a encher o cálice e ofereceu-o ao filho.

Mais uma vez o exército colocou-se em posição de sentido.

Mais uma vez, ficou atento à ordem do Rei. As palavras dele foram as mesmas.

- Se ele me buscar, então corram para ele. Mas se não o fizer, não interfiram. A escolha é dele.

A filha colocou o cálice nas mãos do filho.

- Está tudo bem - assegurou ela. - É doce.

O filho viu o deleite que lhe dançava nos olhos. Atrás dela postava-se a silhueta de um vulto.

- Quem é ele? - perguntou o filho.

- Beba - insistiu ela. Sua voz estava enrouquecida de desejo.

O cálice estava frio contra os lábios de Adão. O líquido queimou-lhe a inocência.

- Mais - pediu ele passando o dedo pela borra no fundo e colocando-a na boca.

Os soldados fitaram seu Rei em busca de instruções. Os olhos dele estavam úmidos.

- Traga-me a sua espada! - O general desmontou e adian­tou-se rapidamente na direção do trono. Ele estendeu a lâmina desembainhada diante do Rei.

O Rei não a tomou, apenas tocou-a. Quando a ponta do seu dedo encontrou o cabo da espada, o ferro foi-se tornando ala­ranjado de calor. Foi ficando mais brilhante, mais brilhante até flamejar.

O general segurou a espada chamejante e esperou a ordem do Rei. Ela veio na forma de um decreto.

- As escolhas feitas por eles serão respeitadas. Onde houver veneno, haverá morte. Onde houver cálices, haverá fogo. Assim seja.

O general galopou ao Jardim e tomou seu posto junto ao portal. A espada chamejante proclamava que o reino da luz jamais seria novamente escurecido pelo passar de sombras. O Rei detestava as sombras. Detestava-as porque nas sombras os filhos não podiam ver seu Rei. O Rei detestava os cálices. Detestava-os porque eles faziam os filhos se esquecerem do Pai.

Mas do lado de fora do Jardim, o círculo da sombra amplia­va-se cada vez mais, e maior número de cálices vazios empor­calhavam o chão. Mais rostos ficavam desfigurados. Mais olhos viam distorcidamente. Mais almas eram deformadas. A pureza estava sendo esquecida e o Rei foi sendo perdido de vista por completo. Ninguém se lembrava de que um dia havia existido um reino sem sombras.

Em suas mãos encontravam-se os cálices do egoísmo.

Em seus lábios estava a ladainha do mentiroso. "Prove, é doce."

E, fiel às palavras do Rei, onde havia veneno, havia morte.

Onde havia cálices, havia fogo. Até o dia em que o Rei enviou o seu Príncipe.

O mesmo fogo que inflamava a espada agora acendeu uma pequena chama e a colocou no meio das sombras.

Sua chegada, como a do portador do cálice, não passou despercebida.

- Uma estrela! - foi como a sua vinda foi anunciada. ­Uma luz brilhante num céu escuro. - Um diamante reluzindo na imundície.

- Brilhe bastante, meu Filho - sussurrou o Rei.

Muitas vezes o cálice foi oferecido ao Príncipe da Luz. Muitas vezes ele veio nas mãos daqueles que haviam abandonado o Rei.

- Não quer experimentar só um pouquinho, meu amigo?­ Com angústia, Jesus fitava os olhos daqueles que procura­vam tentá-lo. Que veneno era esse que fazia o prisioneiro tentar matar aquele que o havia vindo libertar?

O cálice ainda trazia o gosto sedutor do poder e prazer prometidos. Mas para o Filho da Luz, seu odor era vil. A visão do cálice enraiveceu tanto o Príncipe que ele o derrubou da mão do tentador, e ficaram apenas os dois frente a frente, presos um ao outro por furioso olhar.

- Provarei o veneno - jurou o Filho do Rei. - Foi para isso que vim. Mas a hora será a que eu escolher.

Finalmente essa hora chegou. O Filho fez uma última visita ao Pai. Encontrou-se com ele em outro jardim. Um jardim de árvores retorcidas e solo pedregoso.

- Tem de ser desta forma?

-Sim,tem.

- Não existe outra pessoa que possa fazê-lo?

O Rei engoliu em seco.

- Ninguém além de você.

- Tenho de beber do cálice?

- Sim, meu Filho. O mesmo cálice.

O Rei fitou o Príncipe da Luz.

- A escuridão será enorme. Passou a mão sobre a face imaculada do seu Filho. - A dor será tremenda. Então se deteve e olhou seu reino escurecido. Quando ergueu o olhar, seus olhos estavam úmidos. - Mas não existe outra forma.

O Filho olhou para as estrelas ao ouvir a resposta. - Então, que assim seja feito.

Lentamente as palavras que matariam o Filho começaram a sair dos lábios do Pai.

"Hora da morte, momento do sacrifício, é a sua vez. Ensaiada milhões de vezes sobre altares falsos com falsos cordeiros; o momento da verdade chegou.

"Soldados, vocês pensam que o conduzem? Cordas, pensam que o prendem? Homens, pensam que o sentenciam? Ele não dá ouvidos aos seus comandos. Não recua diante dos seus açoites. É a minha voz que ele ouve. É a minha condenação que ele teme. E são as suas almas que ele salva.

"Oh, meu Filho, meu Filho. Erga os olhos para os céus e veja a minha face antes que eu a volte para o outro lado. Ouça a minha voz antes que eu a silencie. Ah, se eu pudesse salvá-lo e a eles. Mas eles não vêem e não ouvem.

"Os vivos precisam morrer a fim de que os moribundos possam viver. Chegou a hora de matar o Cordeiro.

"Eis aqui o cálice, meu Filho. O cálice de tristezas. O cálice do pecado.

"Bata com força, martelo! Seja fiel à sua tarefa. Que seu retinir seja ouvido através dos céus.

"Ergam-no, soldados. Ergam-no bem alto ao seu trono de misericórdia. Ergam-no ao seu patamar de morte. Ergam-no acima do povo que lhe amaldiçoa o nome.

"Agora mergulhem o lenho na terra. Mergulhem-no fundo no coração da humanidade. Fundo nas camadas do tempo passado. Fundo nas sementes do tempo futuro.

"Não há um anjo para salvar o meu Isaque? Não há uma mão para redimir o Redentor?

"Eis aqui o cálice, meu Filho. Beba-o sozinho."

Deus teve ter chorado ao executar sua tarefa. Cada mentira, cada tentação, cada ato feito nas sombras estava naquele cálice. Lentamente, abominavelmente foram absorvidos no corpo do Filho. O ato final da encarnação.

O Cordeiro Imaculado estava manchado. Chamas começa­ram a lamber-lhe os pés.

O Rei obedece ao seu próprio decreto. "Onde há veneno, haverá morte. Onde há cálices, haverá fogo."

O Rei volta as costas ao seu Príncipe. A ira pura de um Pai que odeia o pecado recai sobre seu Filho que está cheio de pecado. O fogo o envolve. A sombra o esconde. O Filho procura o Pai, mas o Pai não pode ser visto.

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A sala do trono está escura e cavernosa. Os olhos do Rei estão cerrados. Ele está descansando.

Em seu sonho, ele está novamente no Jardim. A brisa da noite flutua através do rio enquanto os três caminham. Eles falam do Jardim - de como é, de como será.

- Pai... - começa a dizer o Filho. O Rei toca novamente a palavra. Pai. Pai. A palavra era uma flor, com a delicadeza de pétala, e contudo tão facilmente esmagada. Oh, como anelava por ouvir seus filhos chamarem-no de Pai novamente!

Um ruído o desperta bruscamente do sonho. Ele abre os olhos e vê um vulto transcendente cintilando no umbral da porta.

- Está consumado, Pai. Voltei para casa.

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